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30/01/2022

Nunca esquecerão

Não tenho regras a passar para minhas filhas que em si deem a elas a garantia de realização pessoal caso as cumpram

Por Erlon Rabelo Cordeiro

Naquele sábado de março de 2010 recebi inesperadamente a notícia de que seria pai. Desde a adolescência eu desejava ter filhos de modo que estranhei minha reação; eu não sabia o que fazer. Não se tratava de medo, isso veio depois e repetidas vezes, mas de repente tudo saíra do lugar. Depois de três lanches naquela tarde, esquecendo dos anteriores, e de achar que um segundo exame de confirmação do diagnóstico precisaria ser feito, passei a entender o que estava acontecendo e espalhei a notícia com felicidade.

E cada etapa foi passando. Fases da gravidez, de recém-nascida, de vacinas, de aprender a comer, a andar, a falar, a conviver, e a sensação da notícia da gravidez que achei deixar-me perdido passou a ser uma certeza. O que eu pensei que saberia fazer como pai era tudo enrolação e mentira criada por mim e para mim mesmo. Por mais que eu fizesse o que parecia ser o certo, ou pedagogicamente reconhecido, não funcionava. A criança que veio ao mundo sob minha reponsabilidade não aceitou fazer a parte dela no que diziam as teorias anciãs que me passaram.

E o que eu diria ou ensinaria a esta menina que fosse substancial ao lidar com o mundo? Não eram só as boas regras de criação que não funcionavam. De uma maneira geral as coisas não acontecem de modo linear, com causa e efeito estabelecidas claramente. Os bons nem sempre são felizes, uma religião quase nunca melhora um caráter, os mais inteligentes não ocupam os melhores espaços de decisão, mesmo que sigamos corretamente as leis isso não nos livrará das injustiças, e amar não é suficiente para ser correspondido. Diante da minha desconfiança crônica à sociedade capitalista que vivo, só me restou um conselho para minhas filhas; se um dia forem a show artístico a céu aberto e começar a chover, não se protejam embaixo do palco, pois a instalação elétrica nesse tipo de estrutura é sempre feita com gambiarra. Fora isso, eu não lembro de um conselho que eu tenha convicção que acredito.

Peguei-me então lembrando dos meus falecidos pais, e fazendo exercícios de memória e concisão reconheci o que foi mais significativo para mim. Eles não eram muito de conversa, apesar de compreensíveis. Não lembro de conselhos que sejam a cara deles, porém o rosto deles estava sempre presente, mesmo depois que partiram, nos momentos marcantes da minha vida. Os aniversários, as viagens ao sertão, as correções quando fiquei de recuperação ou prejudicava alguém, as doenças, os filmes a noite na TV, as idas à igreja; em tudo isso eles sempre estavam perto. Não era apenas vigilância ou atentos quanto às algúrias da educação, eles gostavam de estar com os filhos, de presenciar nossas felicidades e tristezas, de compartilhar mesmo com a dificuldade natural de comunicação que se tem num lar. 

Não sou sábio ou experiente. Não tenho regras a passar para minhas filhas que em si deem a elas a garantia de realização pessoal caso as cumpram. Apenas tenho a mim a oferecer. Reconheço que meu trabalho me dá condições de almoçar com elas, de estar toda noite em companhia delas e de acompanhá-las cedinho na escola. Mas não precisa ser quantidade, e sim qualidade em tudo que se puder fazer junto. E claro, não me isento da responsabilidade de castiga-las quando cometem erros consigo e com os outros. Não tenho o direito de ser omisso nisso. Já as percebo, no entanto, repetindo certos hábitos meus como agradecer a alguém que me serve ou cumprimentar as pessoas em espaços sociais. Antes disso não havia me dado conta de que elas me observam, o que me dá mais responsabilidade no agir do dia a dia. Mas me dá sobretudo a garantia de que nossa convivência é tão boa para elas quanto é para mim. E isso, elas nunca esquecerão.

Erlon Rabelo Cordeiro é engenheiro mecânico, professor na Univasf - Universidade Federal do Vale do São Francisco

6 comentários:

  1. Que belo texto, Erlon. Valeu a pena esperar.

    Abração

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  2. É muito verdadeiro e também leal e um diálogo em forma de comentário aberto e sincero traz verdades e respostas sobre a vida familiar a respeito do ser humano.

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  3. Muito boa essa crônica chega dá um quentinho no coração. Educar pelo bom exemplo é importante para se criar laços de confiança e respeito entre pais/mães e filhos/as.

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  4. Esse professor é muito gente boa.

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  5. Percebo sinceridade no texto. Grata pela oportunidade dessa leitura, sr. Erlon Rabelo Cordeiro.

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  6. Que lindo texto. Viver e viver juntos ensina muito na vida.

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