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14/01/2022

Estrada longa e sinuosa

 

Por F. H. Carvalho

O  primeiro contato entre um pré-adolescente nascido na segunda metade dos anos 70 do último século e os Beatles, por ironia do destino, pode ter ocorrido durante um programa de TV. As imagens da última apresentação ao vivo da banda, no palco improvisado sobre o edifício da gravadora, foram mostrados por uma pretensa revista semanal televisiva, em uma época na qual isso ainda era possível - já que os canais de tv agora se parecem tanto com os diários e hebdomadários impressos em sangue e fofocas. Nessa época, provavelmente, o aparelho televisor de casa ainda era sem cores, e também sem aquela infame tela azul, costumeiramente colocada à frente das telas para fazer simulacro de colorização; apenas para destacar que já há tanto tempo entre o ontem e o hoje e os detalhes carecem de precisão, mas não de verdade. Confesso: mesmo ainda menino, acostumado a ouvir sons diversos (alguns mais pesados, influenciados pelo irmão um pouco mais velho), não fiquei tão entusiasmado com aquela banda de quatro sujeitos brancos tremendo de frio sobre um telhado, acompanhandos por um notável pianista negro, que se tornou um pouco o meu herói musical naquela época. 

Billy Preston (1946-2006) é o herói em questão, mesmo tendo escrito o verso “I’m not trying to be your hero” na canção “Nothing for Nothing'', um de seus muitos e esquecidos sucessos. Houvesse as facilidades e distrações da vida moderna naquela época, tais como comunicação instantânea, computadores e telefones móveis “inteligentes”, bem capaz que eu descobrisse ainda mais proezas daquele sujeito talentoso, que ainda menino com menos de uma década, participou de um dueto na mesma TV (mas não a minha) com a lenda Nat King Cole. Preston também é o responsável por uma inspirada versão de “My Sweet Lord” (música que só ganhou um clipe recentemente, 50 anos após seu nascimento), no espetáculo Concert for George ocorrido em 29 de novembro de 2002, em um palco que se tornou uma constelação de estrelas homenageando o, naquele momento, há um ano ausente, George Harrison. Concorde ou não em relação à qualidade da versão dando uma olhada no seu registro em vídeo.

A mais recente imersão no universo da banda ocorreu após a série “Get Back” no serviço Disney+ (aliás, obrigado MercadoPago: pela assinatura gratuita do combo Disney+/Star+ e pelos 50% de desconto no serviço HBO Max). Muito mais do que um mero documentário, tão incensado pelas revistas semanais - que aparentemente tornaram-se programas de TV. O programa é um verdadeiro documento histórico. Graças ao diretor Peter Jackson (1961) com crédito às imagens captadas sob a direção (e sobre a atuação) de Michael Lindsay-Hogg (1940), as quase oito horas de programa, dividido em três partes, esclarecem muitos dos mitos que cercavam aquela que seria a última reunião de George, John, Paul e Ringo como a banda que, de muitos modos distintos, influenciou não apenas a música popular, mas também moda e comportamento no mundo todo.


Segundo a revista Rolling Stone, Jackson teria defendido o tempo de duração de sua edição das filmagens.  “Senti intensamente - e esta é a parte de fã dos Beatles em mim começando: 'Qualquer coisa que não incluir neste filme pode voltar para o cofre por mais 50 anos.' Estava vendo e ouvindo esses momentos incríveis. Eu pensei: 'Deus, as pessoas têm que ver isso. Isso é ótimo. Eles têm que ver isso'.” Na mesma edição, a revista cita uma declaração emocionante de Julian Lennon, primogênito de John Lennon: "O filme me fez amar meu pai de novo, de uma forma que não consigo descrever totalmente. Obrigada por todos que ajudaram a realizar esse projeto. [É de] transformar a vida".

Em Get Back, por exemplo, é possível saborear o processo de criação e amadurecimento da banda inquieta, que, contraditoriamente, se fragmentava exatamente por não querer fazer mais do mesmo. Processo de criação, por exemplo, no caso de Paul e a canção que dá nome à série, “Get Back”

O projeto - que previa espetáculo ao vivo, programa de TV, documentário, livro e álbum - já estava programado para se chamar Get Back, mas recebeu o nome de “Let it Be”. Lindsay-Hogg, britânico nascido em Nova York, filho da atriz Geraldine Fitzgerald supostamente com o aclamado e polêmico diretor Orson Welles, foi autorizado a filmar os Beatles durante os ensaios para o que poderia ser um espetáculo grandioso ao ar livre ou um show ao vivo num estúdio de TV. Na verdade, nada estava definido, nem mesmo o repertório, que seria escolhido ou criado a partir do zero durante as gravações. Embora na maior parte do tempo vemos quatro amigos se divertindo e conversando sobre as aleatoriedades da vida, também é possível estabelecer teorias mais aceitáveis que as que se alastraram a respeito do fim da banda. O cineasta chegou a lançar sua versão das quase 60 horas de material gravado, em um documentário lançado nos anos 70 e chamado “Let it Be”, e em seus menos de 90 minutos, aparenta ter mostrado uma versão distinta das situações gravadas e esclarecidas por Jackson, talvez pela limitação do tempo.  A versão de Lindsay-Hogg, talvez tenha motivação na sua previsão de banda em decadência, por escolha comercial ou porque a notícia da qual não se podia fugir, na época, era o fim dos Beatles. O que se vê em Let it Be é visto também em Get Back, mas sob outro ponto de vista. O olhar entristecido em relação ao primeiro documentário é substituído por um contemplativo no segundo.



É emocionante, para quem gosta de tentar entender nuances do processo criativo, acompanhar o momento em que Paul - durante uma das muitas pausas para fumar - saca o seu instrumento e, como se tivesse brincando, alheio a tudo que ocorre ao redor, começa a testar riffs, acelerando e mudando a ordem dos acordes, durante a execução no baixo, de um canção popular que estava nas paradas naquela semana, e que o próprio Paul havia tocado nos ensaios, chamada “I’m a Tiger”.

Assim, de modo quase lúdico, Paul compõe os primeiros acordes daquela que seria uma das últimas canções de protesto da banda, um protesto quase sarcástico (e o sarcasmo não deixa de ter seu papel nos protestos). Alguns anos antes, com o protagonismo de um vivíssimo Paul, talvez não o mesmo, a banda já nos tinha deixado o legado da poética Blackbird. Aqui criador e criatura em versão solo


Blackbird, tem a introdução também inspirada em outra obra, no caso, nos primeiros acordes de Bouree (que também inspirou, entre muitos outros, o Jethro Tull), de Johann Sebastian Bach (1685-1750).


A letra de Blackbird foi motivada pela luta dos movimentos que exigiam direitos civis na década de 60, em especial o movimento negro estadunidense e, é bem provável, motivada pela figura e pelos discursos do pastor Martin Luther King (1929-1968).  

O processo de amadurecimento também pode ser exemplificado através de John Lennon (1940-1980), homem que antes tinha escrito o infame verso “Well, I’d rather see you dead, little girl, than to be with another man”, que por princípios não cometerei o ato horroroso de impor uma tradução, lançado no (não por causa desse verso) ótimo álbum Rubber Soul (1965). Em um dos momentos iniciais dos ensaios, Lennon toca a música “On the Road to Marrakesh” que mais tarde seria chamada “Child of Nature”, não aproveitada pela banda no álbum duplo de 1968 e gravada por ele já em carreira solo em 1971 como “Jealous Guy”. Embora “I was swallowing my pain/I didn't mean to hurt you/I'm sorry that I made you cry/Oh, no, I didn't want to hurt you/I'm just a jealous guy” ainda demonstra um homem inseguro que tenta justificar atos e ser perdoado, esses versos já soam como um certo avanço. Mas a simplicidade crua de “Dont Let me Down” (aliás, alvo de crítica severa de George por “soar como a mesma merda de sempre”) pode representar a letra romântica mais amadurecida do sujeito que passou a levar o par romântico para o trabalho. John, segundo ele mesmo teria reconhecido, foi negligente em relação ao filho mais velho Julian (que inspirou dois clássicos, “Lucy and Sky with the Diamonds”, por conta de um desenho de sua autoria, e “Hey Jude”, escrita por Paul “para animá-lo”) e, em um segundo momento da vida, fez uma longa pausa na carreira solo - pausa interrompida pouco antes de seu assassinato, em 1980 - para  cuidar de seu filho mais novo, Sean, inspirador de “Beautiful Boy” (a canção mais bela de John, segundo Paul), uma singela canção em que John conforta seu filho após um pesadelo e se conclui em uma declaração de amor de pai para filho.

Já a gênese da letra de “Get Back” está desnuda no documentário. Chamam a atenção os momentos em que os Beatles folheiam notícias aleatórias, muitas sobre a própria banda, em meio a sessões de música, leitura e escárnio. Um tempo depois, a tela mostra matérias da época a respeito do movimento anti-imigração e no discurso de seu líder, que entre outras coisas pregava que “o homem negro escravizará o homem branco”. Fica evidente após várias tentativas de Paul - que nitidamente olha para a manchete de jornal na mão do engenheiro de som estampando “Aviso aos ministros: Basta de Imigrantes”, ao mesmo tempo em que recebe respostas em acordes e frases soltas de John: o resultado é uma resposta crítica ao movimento racista, e não um apoio, como alguns tentaram pregar sem sucesso durante algum tempo. Quem insiste na interpretação errada, ou é mal intencionado ou precisa de uma orientação para entender ironias.



Já Paul McCartney (1940) aparenta estar sempre dois passos à frente dos demais, e isto desencadeia reações que serviram tanto para a continuidade do sucesso, quanto para o ocaso melancólico do conjunto. Capaz de tocar qualquer um dos instrumentos do estúdio, Paul às vezes se comportava como empresário e produtor da banda, principalmente após a morte de Brian Epstein (1934-1967), um dos grandes responsáveis por botar o conjunto  nos trilhos. Conflitos com George, que àquela altura conseguira emplacar poucas (porém magníficas) canções nos álbuns da banda, se tornaram frequentes muito por causa da forma como Paul queria conduzir os trabalhos. Com John - a quem talvez teria cabido o papel de liderança após a ausência de Brian, que tomava a frente nas decisões da banda - cada vez mais alienado, muito por conta de seu vício ascendente em heroína, a liderança foi ficando cada vez mais nas mãos de Paul. E é possível perceber a inquietação de Paul em relação ao rendimento do grupo em vários momentos, alguns bem tensos.


Fossem ouvidos alguns dos conselhos de Paul, a banda teria evitado alguns percalços (mas não todos, já que Paul, como qualquer humano, errou bastante também. O último álbum da banda, Abbey Road, que apresenta duas das melhores canções de um insatisfeito George, “Here Comes the Sun” e “Something”, inicia com “Come Toghether”.Lennon baseou-se em um antigo sucesso de Chuck Berry "You Can't Catch Me" https://youtu.be/9jKrHzps0XM, Paul sugeriu torná-la mais lenta para evitar problemas e constrangimentos, mas Lennon insistiu. A música foi gravada e mais tarde deve ter gerado alguma boa compensação a Berry, já que este firmou com a banda um acordo judicial. E, provavelmente, ficou tudo bem, já que um dos verdadeiros reis do rock (e você achava realmente que o rei do rock era branco?), dentre várias parcerias, embora um ensaio prévio tivesse caído bem, se apresentou com Lennon em 1972, com direito à já famosa vocalização estranha de Yoko, entre apitos e batidas em um bongô.


Voltando ao processo de amadurecimento, este não tinha chegado ao lado financeiro. The Beatles era também um grande negócio e sem Epstein ficou evidente a falta de traquejo dos quatro membros da banda para negócios. A Apple Corps Limited, fundada pela banda para gerir os negócios estava em dificuldade e, principalmente, John, mas também George e Ringo queriam que Allen Klein, já parceiro de negócios dos Rolling Stones, fosse contratado. Já Paul, desconfiava de Allen e gostaria que o pai de Linda McCartney (1941-1998) (na época ainda Linda Eastman) fosse o empresário da banda, sendo derrotado na contenda. Reza a lenda não canônica que as reuniões com Klein e a banda ocorriam em clima belicoso, mas pelo menos nelas surgiram clássicos como “Here Comes the Sun”, de George, e “You Never Give Me Your Money” de Paul, ambas registradas no álbum Abbey Road, e também “Band on the Run”, também de Paul e registrada no álbum de mesmo nome de Paul já com os Wings.



Paul teve que processar a banda (não os amigos, como costumam afirmar) para que os Beatles pudessem finalmente ser extintos como conjunto - e deixarem de pagar pesados impostos. E no final das contas, ao que tudo indica, a razão estava com o canhoto, Klein deixou o legado de causar um grande rombo nos Rolling Stones e quase dar um golpe bilionário nos Beatles. Ao mesmo tempo, Klein e Dick James venderam o catálogo das músicas dos Beatles, em especial da dupla principal de compositores, já que George e Ringo não renovaram contrato com a Nothern Songs, empresa de Dick, que aparece em alguns momentos do documentário conversando sobre a publicação das músicas. O catálogo chegou a pertencer ao cantor Michael Jackson por algum tempo, a partir de 1985. Depois de lucrar um bocado, com a cessão de direitos de uso das músicas, Michael vendeu metade do catálogo por cerca de duas vezes o valor de compra para a ATV/Sony. Após a morte de Jackson a ATV/Sony comprou dos herdeiros a outra metade por quase dezoito vezes o lance de Michael, 47,5 milhões de dólares, dado em 1985.


George Harrison (1943-2001), visivelmente contrariado nos primeiros momentos, foi o responsável pela grande crise nos ensaios, mostrada na primeira das três partes do documentário Get Back. É dada ênfase à sua decisão de deixar o grupo - o segundo dos integrantes a deixar momentaneamente o grupo, já que Ringo o fez durante as gravações do álbum The Beatles,mais conhecido no Brasil como álbum branco, lançado em 1968, e também de modo não intencional por conta de uma crise de amigdalite, na época em que o grupo ainda fazia turnês. Visivelmente desconfortável com Paul lhe orientando como tocar em certo momento, mas certamente já descontente com a situação de ter poucas músicas aproveitadas nos discos da banda resolveu  deixar os ensaios exatos 53 anos antes da existência dessa linha que está lendo, no dia 10 de janeiro de 1969, deixando um recado para os amigos: “Nos vemos nos clubes”. Desde o começo ele já vinha reclamando da acústica nos estúdios Twickenham, onde ocorriam os ensaios. Após chegar em casa escreveu em seu diário pessoal: “Acordei. Fui a Twickenham. Ensaiei até a hora do almoço – saí dos Beatles – vim para casa.” Após isso provavelmente pegou um violão, pois afirmou que nesse dia compôs “Wah-Wah”, presente em seu álbum duplo, “All Things Must Pass”, certamente fazendo referência a seus dias na banda do refrão famoso, Yeah, Yeah, Yeah.


https://dai.ly/x47iq7l


Foram necessárias duas reuniões (“uma muito ruim e a outra boa”) e cinco dias para convencerem George a retornar às gravações, que não ocorreriam mais em Twickenham, mas nos estúdios EMI, na famosa via conhecida mundialmente e ponto preferido para fotografias em Londres, Abbey Road, que também é o nome do último (e talvez o mais executado) álbum lançado pela banda. Nos estúdios George aparentava estar com a fisionomia menos carregada. Embora permanecesse fumando muito, o que quase me fazia ter vontade de atravessar a tela para termos uma conversa e pedir que abandonasse ou pelo menos diminuísse a frequência em que acendia o cigarro, era possível observar um sorriso mais aberto naquele que ficou conhecido como “Quiet Beatle", com o que seus amigos mais próximos devem discordar. Muito além da música, George se envolveu na produção de filmes (penhorou a casa para pagar a produção de “A Vida de Brian”, onde faz uma participação) e era capaz de rir de si mesmo, mesmo que pouca gente tivesse querendo acompanhá-lo, como é possível ver nesta gravação:



Harrison, ainda juntou uma constelação em torno de si para formar a superbanda “The Travelling Wilburys”, que fez uma pausa (nunca foi desfeita, segundo seus integrantes) pouco tempo após a morte natural do amigo Roy Orbison. Depois George travou uma luta contra um câncer de garganta e foi momentaneamente vitorioso. Um tempo mais adiante um sujeito descontrolado invadiu sua casa e lhe atingiu com cerca de 40 facadas, em sua maioria no peito. Sobreviveu graças à intervenção de sua esposa, Olívia, que atingiu o agressor com um acendedor e um castiçal. Mais tarde, uma nova luta contra o câncer - que lhe perseguiu o pulmão e o cérebro - não pode ser travada por muito tempo. George nos deixou em 29 de novembro de 2001, pouco tempo após reencontrar Ringo e Paul, mas sem John que havia sido baleado em 1980. Provavelmente em Get Back estão os últimos momentos de confraternização dos quatro amigos em um mesmo ambiente, longe de advogados, tribunais e imprensa.


Richard Starkey (1940) é o alter ego do baterista Ringo Starr. É com seu nome de batismo que Starr assina as composições. Ringo foi o segundo baterista da formação dos Beatles, após a demissão de Pete Best (1941), pouco tempo após a banda ter sido dispensada pela gravadora Decca Records.  Engraçado (ou irônico) que a primeira aventura de Ringo nos vocais, em “I Wanna Be Your Man”, foi em um versão lançada semanas após o lançamento da mesma música, composta pela dupla Lennon-McCartney, pelos Rolling Stones. Irônico (ou engraçado) que os Stones foram aceitos para um contrato com a Decca por causa da recomendação de George Harrison. E o lado surreal de tudo isso: esse é o único exemplo de superbanda que fez cover de si mesma fazendo regravação de sucesso de outra superbanda, pelo menos o único exemplo que tenho em mente. Ringo também gravou os vocais em composições próprias, e em Get Back é possível testemunhar o exato momento em que ele apresenta o que seriam os primeiros acordes de “Octopus’s Garden”, recebendo a atenção e a colaboração de Harrison.



A letra e a melodia presente de Octopu’s Garden, talvez de modo não intencional, mostram bem o que se vê de Ringo no documentário. Um sujeito tranquilo, falando pouco, fazendo o trabalho que lhe pedem na bateria, bem diferente do membro falante e engraçado que se via nas entrevistas e apresentações. Talvez mudança de estado de espírito; talvez já vontade de estar em outro mundo como nos versos “I'd ask my friends to come and see/ An octopus's garden with me/I'd like to be under the sea/ In an octopus's garden in the shade”. Ouço Octopus’s e penso em Ringo saindo do submarino amarelo e encontrando em alto mar nosso Peixuxa que “entra pelas portas do Oceano Atlântico”, criação de nosso Raul Seixas em parceria com Marcelo Mota.



Peixuxa, aliás, tem melodia inspirada e introdução quase idêntica a outra canção famosa, composição de Paul (e que John, aliás, detestava) Ob-La-Di Ob-La-Da, criada em homenagem ao músico nigeriano radicado na Inglaterra, Jimmy Scott, por causa da expressão intrigante e intraduzível que este utilizava o tempo todo.



Voltando a Ringo e sua presença tranquila, quase alheia às discussões que ocorriam ao redor, tem um pano de fundo já estendido logo no início das sessões. A pressa em compor, gravar e se apresentar era motivada pela agenda do baterista, que já estava confirmado - junto a Peter Sellers que aparece de surpresa no estúdio durante os ensaios - no elenco do filme “The Magic Christian”. Em português, sabemos bem por qual motivo, o filme foi batizado de “Um Beatle no Paraíso”. Mal recebido por público e crítica, na época de seu lançamento, o filme teve a honra de ter sua história homenageada pelo seriado The Simpsons, no quinto episódio da décima segunda temporada, chamado “Homer vs. Dignity“.


Muitas pessoas aparecem e desaparecem durante os ensaios. A mais marcante, sem dúvida foi o já citado herói, Billy Preston. A presença de Preston deixa a sensação de que, por alguns momentos, as diferenças foram deixadas em segundo plano e o grupo passou a trabalhar de modo colaborativo e se divertindo ao mesmo tempo. Muito mais tarde, em tempo e espaço, George afirmaria sobre a mudança de ares com a chegada de Billy aos estúdios: “É interessante ver como as pessoas se comportam bem quando você traz um convidado, porque elas não querem que todos saibam que são tão malvadas.” Em um ou mais momentos, Preston é cogitado para fazer parte da banda por Harrison, que em poucos segundos já deseja acrescentar outros nomes (ele que antes de sua saída tinha proposto que chamassem Eric Clapton, responsável pelo solo não creditado para a canção “While My Guitar Gently Weeps”, composta pelo próprio George para a banda). Quando George sugere que chamem Bob Dylan (mais tarde seu colega de formação na Travelling Wilburys), Paul logo coloca um freio: “A banda já está ruim demais apenas com nós quatro”.
 

Outra das presenças constantes é a de Yoko Ono (1933), na maior parte do tempo de olhar vago e taciturna, mas em uma outra parcela de frames, berrante e divertida. Foi injusto o massacre direcionado por décadas a Yoko Ono após o fim dos Beatles - às vezes motivado por uma junção de misoginia, preconceito e ódio à personalidade da artista pouco convencional, outras vezes apenas por ser necessário achar algum quinto elemento para levar a culpa pela separação da banda - até mesmo o formato das nádegas da companheira de John continua sendo motivo de ataque e desdém, como se o mundo fosse repleto de nádegas redondas e perfeitas. Dentre todas as posições acertadas de Peter Jackson nessa sua versão é elogiável sua decisão de mostrar que Yoko estava ali - assim como outras companheiras e namoradas surgiram com menos frequência - e que pode ter tirado um pouco o foco de John, mas não foi o problema. Simbólica a frase de Paul, na presença de todos: “Daqui 50 anos dirão que nos separamos porque Yoko sentou no meu amplificador, e riremos disso”.


É claro que, entre tantas horas, foram necessárias algumas pausas; embora a maioria delas para que meus filhos pudessem assistir a não menos icônica série Mafalda, personagem genial do cartunista argentino Quino e a mais importante fã dos Beatles. A série animada foi produzida originalmente para a televisão espanhola nos anos 90 e é uma das mais relevantes animações disponíveis no Disney+. Assim como a criança de cerca de 10 anos que eu fui não estava tão interessada em conhecer um pouco mais da banda do telhado, meus guris tem o direito de preferirem outros meios de se animar.


Mas mesmo as crianças talvez tenham percebido a sinergia quase imediata durante os últimos momentos da parceria Lennon-McCartney (provavelmente a mais famosa de todas as parcerias) em suas tentativas e erros até conceberem o que poderia ter se transformado na musicalização do famoso e fundamental discurso de Luther King, que começa com “I have a dream”, na belíssima e empolgante canção “I’ve Gotta Felling”, gravada ao vivo no concerto no telhado. Paul trouxe a ideia inicial da música em um tom bem otimista e John a complementou ricamente com os versos de outra música composta anteriormente, quase recitados ao invés de cantados, começando com “Everybody had a hard year/ Everybody had a good time/ Everybody had a wet dream/ Everybody saw the sunshine“. Embora pareça muito, definitivamente ele não está falando dos anos de destruição que nos deprimem neste país. Mas ainda nos resta a esperança… A apresentação no telhado, e a surpresa do público, podem ser apreciadas em vários locais por aí, como por exemplo em https://www.bilibili.com/video/BV15W411B7SH/


O sucesso da banda e a febre que tomou de assalto a europa ocidental e estados unidos, principalmente (mas, de certa maneira, o mundo), febre costumeiramente chamada de beatlemania, trouxeram um fardo para os quatro membros. Durante certo momento, decidiram não mais fazer apresentações. Citaram os puxões, pessoas correndo atrás de aviões (um deles, pelo menos, pegou fogo) e receio de violência física - George, em particular, parece ter ficado bem impressionado com o assassinato de John Kennedy. Mesmo com público restrito, as coisas às vezes saíam de controle. No clipe da “Hey Jude”, com plateia selecionada por Mal Evans (espécie de assessor, secretário, onipresente no documentário, metralhado pela polícia após um surto nos anos 70), é possível ver no final da apresentação a situação desconfortável de Paul ao piano, sendo empurrado, cutucado e, muito provavelmente, apalpado.



A aparente diversão entre aqueles quatro amigos tocando juntos foi interrompida de modo cômico pela polícia. Cômico, embora infelizmente ainda seja natural temer que mesmo em um vídeo de um tempo tão distante as coisas fujam do controle, o pobre do Billy Preston seja o único baleado e o Termo Circunstanciado de Ocorrência registre morte necessária para repelir injusta agressão atual ou iminente e peçam socorro ao excludente de ilicitude. O “Rooftop Concert” não é o fim, mas a sensação é de último canto do cisne. A banda não se apresentaria mais junta, e mesmo os contatos interpessoais foram raros. Fartos foram os processos judiciais, as trocas de acusações e os (bons) duelos musicais, em especial entre Paul e John, que trocaram farpas em letras de um “homenageando” o outro. Felizmente, depois de tudo acertado, ambos se reconciliaram e retomaram brevemente a amizade, inclusive quase indo de surpresa ao estúdio de TV para uma apresentação no momento em que juntos assistiam a edição ao vivo do programa Saturday Night Live e ouviram a piada do apresentador oferecendo 3 mil dólares por uma apresentação dos Beatles (“dividam como quiserem, vocês podem dar menos ao Ringo”). Por outro lado, Paul e George, embora tenham arranhado um pouco a relação, não deixaram de demonstrar afeto e amizade um pelo outro por muito tempo. É tocante o relato dando conta que, dias antes do falecimento de George, McCartney o visitou e passou horas simplesmente segurando sua mão. “A última vez que o encontrei, ele estava muito doente e segurei sua mão por quatro horas. Enquanto fazia isso pensei: ‘Nunca segurei sua mão antes, não é isso que dois caras de Liverpool fazem, mesmo que se conheçam bem. Você vai me bater’. Mas ele não bateu, apenas acariciou minha mão com o polegar e eu pensei: Ah, tudo bem, isso é a vida. É difícil, mas é linda. E é assim.”


Enquanto Ringo, o mais alheio às confusões, permaneceu colaborando e recebendo colaborações de todos, inclusive aconselhando Lennon a repensar e esquecer a briga quando convidado para tocar em “How Do You Sleep?”, clara provocação a Paul que havia afirmado que a composição “Let it Be”, odiada por John, fora composta a partir de um sonho com sua mãe, falecida precocemente assim como a de Lennon. George aceitou participar da ácida gravação que tinha versos como “Jump when your mamma tell you anything/ The only thing you done was yesterday/ And since you're gone you're just another day”.



Horas antes de sua morte, já com alguns anos de amizade retomada, Lennon teria afirmado sobre Paul durante uma entrevista ao radialista Dave Sholin: “Ele é como um irmão e eu o amo. As famílias brigam e tem seus altos e baixos. Mas no fim do dia, quando tudo estiver dito e feito, eu faria qualquer coisa por ele. E penso que ele faria qualquer coisa por mim.” Meses antes, o mesmo Lennon falou ao jornalista Andy Peebles, a respeito de coisas aleatórias como Paul tocando sua campainha no edifício Dakota e Lennon respondendo: “Estou assando pão e cuidando do bebê! Se você acha que eu vou sair para os clubes, você está louco”. Depois de um hiato de cinco anos na carreira para cuidar de Sean Lennon, John lançou o álbum Double Fantasy em 1980 e o estava divulgando em apresentações e entrevistas. No dia 08 de dezembro de 1980, quando voltavam para casa, Yoko teria proposto a Lennon que jantassem antes de voltarem para casa, ao que ele respondeu: “Não! Quero ver Sean antes que ele vá dormir”. O atirador o aguardava próximo à portaria do Dakota. 


Ironicamente, a foto da capa do álbum Abbey Road mostra os “quatro garotos de Liverpool”, John, Ringo, Paul (descalço, mas vivo) e George, nessa ordem, deixando os estúdios de gravação. “The End” seria a última canção do disco, mas um funcionário novato na gravadora acabou incluindo uma faixa adicional por engano. Paul, que não estava de acordo com a (pós) produção de Phil Spector para o álbum, deixou claro o desconforto com a forma com que Phil - que morreu na prisão durante o último ano - introduziu uma orquestra e um coro na gravação original, lançando uma versão masterização diferente no projeto “Naked”, já no milênio seguinte, mas era tarde, pois a versão do icônico álbum original já tinha se fixado em corações e mentes. Aqui uma apresentação solo de Paul.


E é nesse ponto que me pego indagando sobre aquela bravata de que o Brasil é um país cordial, que nunca tivemos problemas raciais, que as diferenças foram historicamente pacificadas. Convenhamos que não somos um grupo de amigos de escola se encontrando após o recesso de fim de ano (é nesse contexto que se iniciam as gravações dos ensaios dos Beatles). E até mesmo entre grupos de amizade mais restrita as relações interpessoais estão fragilizadas. Nunca foi tolerável perceber que os cercavam desejavam o seu sumiço, ou o sumiço dos seus. E agora, com nossas feridas abertas e muito distantes da cicatrização, estamos também em uma estrada estranha, sem conseguir enxergar a próxima curva e com grandes chances de capotamento - já que direção não temos. E também já não há nenhum sentido: a vizinha sorridente de outros tempos, agora escarra se lhe vê de rubro, o seu amigo de bairro na juventude posta fotos aleatórias com informações (falsas) de crimes defendendo o apedrejamento de pessoas normais - e se você demonstra que as informações são falsas ele passa a defender que você seja apedrejado também. Até mesmo o médico, a quem você confiou a sua vida ou a de seu filho, aparece por aí oferecendo tratamentos reconhecidamente ineficazes e perigosos, com o absurdo silêncio dos conselhos e associações… Temos muito mais a lamentar que a separação dos Beatles, para eles a separação talvez tenha sido uma salvação temporária. A nós, nos resta tentar uma convivência, senão harmoniosa, pelo menos com reconciliação e respeito. Ainda que isso nos custe uma dose de paciência, um bocado de suco de maracujá e alguns quilos de farinha, pra levar tantas fatias de bolo aos que desejavam que você fosse colocado em um avião e lançado em alto mar.


Não sei bem onde vamos aportar como nação, mas ao contrário da maioria dos prognósticos, não estamos totalmente perdidos. Nesses ciclos (de destruição, esperança, destruição novamente e uma nova esperança) nos comportamos um pouco menos como uma grande família e mais como uma banda - bando pode ser um termo mais apropriado, embora turba seja mais próximo da realidade. Nos sentimos impotentes perante as demandas urgentes, embora capazes de assustadores impulsos criativos. Muitos tentaram, alguns ainda tentam e, mais futuramente, outros tantos mais tentarão, mas a curto e médio prazo, parece improvável uma separação. É também improvável a convivência nos mesmos termos de antes A menos dos princípios, tudo deve ter limites. E é preciso acreditar que nessa longa estrada, com tantos anos de escravidão, exploração e desigualdades, embora Revolver seja idolatrado pelos mais barulhentos, o álbum branco ainda mereça ser objeto de estudo. 


E a partir de agora, quando alguém perguntar o que acho de um desses reality shows que não assisti, e que provavelmente jamais assistirei, eu posso rebater a pergunta com satisfação - além de um sorriso interno, ao mesmo tempo irônico e melífluo. E você, já assistiu Get Back?


E é claro, se você leu até aqui, merece meu abraço afetuoso, e minha esperança por dias muito melhores, com meu último presente:



Esse texto é dedicado ao amado David Alves de Carvalho (1969-1993), e aos nossos intermináveis concertos no telhado,  tomando vinho ruim (quase nunca é bom) e ovo cozido. O telhado era da casa na qual morávamos, na longa e sinuosa estrada em que foi covardemente assassinado (por diferenças de opinião) em um frio e distante 28 de agosto de 1993.



Vivo estivesse, David estaria discutindo apaixonadamente que eu deveria ter falado do Led Zeppelin e não dos Beatles. Até sempre, irmão.




F. H. Carvalho é pai da dupla Ernesto & Leon, filho orgulhoso de D. Maria Anunciada, volante aposentado da Pelada do Sócrates, matemático, professor, poeta bissexto, ensaísta, vocalista presunçoso, escritor e capixaba. Publicou recentemente “Ética Demonstrada à maneira dos canalhas”, pela editora Viseu, romance - na realidade a junção de contos roubados - e orgulhoso de seu fracasso de público e crítica concedeu a si mesmo um prêmio literário, um belíssimo violão Yamaha. É coautor junto com o editor da Folha da Cidade, Cláudio Angelim, da HQ “Crossroads Shots ou o Xote de Encruzilhada” que um dia sairá pelo mundo para homenagear o sanfoneiro Severino Caboclinho famoso nas bandas de Terra Nova. Provavelmente, a amizade com o editor é o único motivo pelo qual foi convidado a escrever a coluna “Paralelas'', na Folha da Cidade, tarefa que espera ser recompensada na forma de doses de cachaça de alambique e porções de vazio de bode.
Contato: colunaparalelas@gmail.com









10 comentários:

  1. Jesus! Eu que sou só fã dos Beatles estou impressionada com a qualidade desse material imagine os beatlemaníacos como alguns amigos/as. Que maravilha! Parabéns ao professor e escritor Fábio Carvalho, autor, não somente de um artigo mas de uma verdadeira reportagem, e à Folha da Cidade por nos trazer uma verdadeira aula sobre muitos momentos dessa banda espetacular dos quatro meninos de Liverpool que conquistaram o mundo.
    Muito interessante o formato, intercalando textos escritos e vídeos.

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  2. Quanta riqueza de detalhes nos bastidores da banda mais incrível do mundo. Fez-me refletir no tamanho de nossas fragilidades pelo simples fato sermos humanos. Texto regado também a um bela homenagem a quem não se faz mais presente fisicamente, porém eterno aos sentimentos de quem escreveu. Cativou meu anseio pela próxima escrita. No aguardo...

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  3. Parabéns, um texto composto por linhas melódicas e nuances harmônicas incríveis assim como as composições instrumentais deixadas por Harrisson.

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  4. Vou assistir a esse filme com certeza, amo The Beatles. Parabéns professor pelo lindo texto.

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  5. Muito legal acompanhar isso. Obrigado, professor, fica impossível eu não me interessar pelo filme. The Beatles é minha banda favorita e saber desses detalhes me faz ainda mais apaixonada por esses incríveis artistas.

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  6. Quantas recordações! Não tenho palavras para definir bem o que sinto, pois as músicas dos Beatles fazem parte da minha vida,assim como da vida do autor do texto Fábio H Carvalho meu irmão. Tudo o que fica na história, na memória não morre. Simplesmente um texto fantástico! FHC Parabéns!

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  7. Um texto Fantástico! Os Beatles fazem parte da minha vida, da minha história. FHC Parabéns!

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  8. Que texto emocionante. Muito bom!

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  9. No meu primeiro dia de aula do ano um maluco entrou de bermuda e chinelo, com um giz na mão e o apagador na outra. Eu achei que fosse trote, mas era meu professor. Já se foram muitos anos e eu ainda lembro de cada ensinamento e de cada conversa. Fábio não é um professor, é quase um guru! Metódico e exigente, mas honesto e leal. Saudades das aulas e das conversas. Quando vier ao ES, venha a Santa Maria de Jetibá tomar um café comigo e meus filhos. Abraço enorme. Ronivaldo.

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